
A importância do currículo
Publicação em 22.03.22
Charge de GERSON KAUER
A reclamante é uma mulher bem talhada, aparentando 30 anos. O reclamado, um senhor de 60. A alegação é a de que, por vários anos, ela trabalhara para a família dele como empregada doméstica, sem carteira assinada.
No depoimento, ela revela circunstâncias confusas: iam ao supermercado juntos, aos domingos almoçavam na melhor churrascaria da cidade. Às vezes viajavam...
Lá pelas tantas, ante a insistência do juiz, a reclamante revela:
- Doutor, foi assim... quando eu comecei a trabalhar, ele era casado com a dona Juçara. Uma pena, ela ficou doente e em poucos meses faleceu. Viúvo, o seu Agenor continuou morando na mesma casa. Eu tinha as minhas peças ali, também. Mesmo antes da perda da esposa, o seu Agenor sempre foi mulherengo, mas ele nunca se achegou em mim. Depois de uns meses morando juntos, ele sempre me falava que eu tinha que... melhorar o meu currículo, para garantir um futuro melhor. Ele insistia em falar em currículo...
Há uma pausa. O juiz de então - Roberto Siegmann, hoje ativo advogado trabalhista - diz à reclamante que “a senhora pode prosseguir”:
- Passamos, então, a dormir no quarto dele. Acontece que embora nos déssemos muito bem, o defeito que ele tinha nunca desapareceu. Saía, não dizia onde ia, voltava tarde, daquele jeito...
A reclamante puxa fôlego e externa sua decepção:
- Uma madrugada, ele chegou com quatro manchas vermelhas de batom, na camisa branca que, um dia antes, eu tinha lavado e passado com todo o capricho... Peguei, então, os meus trastes e fui embora para a casa da minha mãe. E aqui estou...
O juiz percebe que, indiscutivelmente, o cenário fora de uma relação conjugal, e não empregatícia. Mas, como magistrado experiente, insiste na conveniência de um acordo.
A reclamante afirma que não deseja dinheiro. Mas quer a cama de casal, os móveis do quarto, o fogão, o refrigerador, o sofá e o televisor. Perguntada sobre “o salário e valores pecuniários”, ela diz que sempre pediu a ele e recebeu corretamente o dinheiro que necessitava.
Dada a palavra ao reclamado, ele concorda com a transferência dos bens móveis, adicionando ao rol, generosamente, a roupa de cama e todos os móveis da cozinha. Celebrado o acordo, as partes e os advogados levantam-se para as despedidas.
A reclamante não perde tempo, olha para o reclamado e diz:
- Seu Agenor, espero que o senhor tenha sossegado o pito, deixando de ser mulherengo...
Ele olha ternamente para ela, e dispara:
- Só morto, querida...